domingo, 14 de agosto de 2011

Texto de Mauro Volpini sobre fundamentos das relações entre Cultura, Trabalho e Educação

Reflexão sobre trabalho, práticas culturais e educação .


Mauro Volponi


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Com o trabalho o ser humano transforma as forças materiais em forças simbólicas: linguagem, valores, ideias. O que se faz com os braços, também se faz com o pensamento. E vice-versa. Portanto, não é difícil de notar que se usa o pensamento quando alguém trabalha fisicamente e, de alguma maneira, usa força física no trabalho intelectual.

Simbolizar é significar o mundo pela palavra. Com isso, é possível tomar consciência e/ou enganar-se no que se pensa sobre o mundo e sobre os outros. Os significados são criados por homens e mulheres, portanto podem ser transformados, esquecidos e recriados.

Entre os antigos gregos, o trabalho era relacionado com a escravidão. A escravidão, na filosofia de Aristóteles (século IV a.C.), funda-se no pensamento de que há homens que não podem ser considerados humanos pelo seu modo de viver, porque dependem do trabalho para sobrevivência. Entre os romanos, o trabalho seria uma espécie de castigo, uma punição para os derrotados nas guerras. Os romanos escravizavam os povos dominados pela força de seus exércitos. Já entre os cristãos, na idade média, o trabalho era associado à dor, ao sofrimento e à escravidão. Dos gregos ao final da idade média, o trabalho era símbolo da exclusão social, ou pelo menos, as pessoas que dependiam do trabalho não participavam da vida política. Alguns trabalhavam para a sobrevivência de todos, enquanto outros se dedicavam ao conhecimento, à espiritualidade e ao governo. O verdadeiro homem se aproximava mais das coisas espirituais, enquanto aqueles que produziam as condições materiais de sobrevivência estavam mais próximos da animalidade. É que, na antiguidade, a verdadeira vida humana, a vida ideal, a natureza humana, estava na vida contemplativa, na vida dedicada ao conhecimento e à virtude moral.

Contudo, a partir do renascimento (século XV e XVI) e com a modernidade, o trabalho ganha outro significado: ele passa a ser considerado como uma força de criação, como modo de intervenção humana na natureza, para transformá-la. Segundo Hegel, filósofo alemão do início do século XIX: “foi com o trabalho que o ser humano ‘desgrudou’ um pouco da natureza e pode, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais” (Apud KONDER, 1971, p.24). Quer dizer que, diferentemente dos antigos e medievais, os modernos passam a reconhecer a humanização no trabalho e não mais apenas como sofrimento e castigo.

Esse significado não é mais símbolo de exclusão, mas é o modo como o homem se afirma diante da natureza. Os homens e as mulheres já não buscam apenas contemplar a natureza, querem também agir sobre ela. Na modernidade é que o trabalho é valorizado como prática cultural. É pela atividade humana que homens e mulheres transformam a realidade e constroem material e simbolicamente o mundo. Assim, toda prática cultural é trabalho, na medida em que com ele o homem age em um mundo já construído, para transformá-lo em outro mundo com a esperança de uma vida social melhor.

O mundo humano é o mundo da cultura, produto da socialização, do regramento e da produção efetuados por homens e mulheres. Com a simbolização homens e mulheres podem registrar e construir significados. Com isso produzem conhecimentos. Com o regramento organizam, hierarquizam e disciplinam as relações sociais. Com o trabalho agem sobre a natureza e sobre si mesmos. Com isso produzem material e simbolicamente as condições de vida de homens e mulheres.

Se toda prática cultural é trabalho e as práticas culturais são diferentes, logo há diferentes tipos de trabalho e diferentes formas de trabalhar. Ou seja, o homem percebe que pelo trabalho pode garantir a sobrevivência e viver melhor. Isso permite que o trabalho se torne o centro da organização da vida social. Essa organização dividiu o trabalho entre os homens e sofreu transformações históricas, devido ao aparecimento de novas condições de trabalho, as quais dizem respeito às transformações técnicas e tecnológicas do mundo. São equipamentos que ajudam a produzir outros conhecimentos e novos equipamentos, para usá-los com outros e novos fins.

De acordo com Marx (Apud KONDER, 1971), a divisão do trabalho serve como elemento de regramento e hierarquização na sociedade. Uma das divisões que ocorrem é aquela que separa trabalho manual e trabalho intelectual. Essa divisão se baseia na diferenciação entre teoria e prática, que se estabeleceu na organização social desde os gregos antigos e torna-se mais enfática no mundo moderno, com as transformações na economia a partir da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII. A divisão do trabalho favorece a hierarquização na sociedade, que põe o saber teórico ou trabalho intelectual ao lado do poder, e o trabalho manual sob domínio e controle do saber. Há uma significação e valorização do trabalho intelectual em contrapartida a uma desvalorização do trabalho manual, ficando o trabalho intelectual para quem “sabe mais” e o trabalho manual para quem “sabe menos”.

Conforme Marx (Apud KONDER, 1971), a modernidade criou uma visão simbólica para o trabalho, tornando o humano uma abstração de si. Um sujeito sem rosto. Como trabalhador, o indivíduo não possui vontade própria sobre o que e como produzir – esse poder de decisão não lhe pertence, como não lhe pertence o fruto de seu trabalho. Sua identidade, ao mesmo tempo que é sua, não lhe pertence. Foi-lhe atribuída por outro, mais precisamente definido pelo mercado. A revolução industrial, o conhecimento e os equipamentos técnicos e tecnológicos tornam o trabalho mais mecânico, mais previsível e dividido.

Assim, o trabalho parece uma espécie de espaço vazio que o trabalhador vai preencher. Quando um estiver cansado, ele é dispensado e outro entra em seu lugar. O trabalho passa a ser uma função social e o trabalhador já não trabalha mais naquele sentido de transformar livremente a natureza e a ele mesmo para produzir-se como humano. Passa simplesmente a cumprir uma função cujo fim ele desconhece, não tem consciência. Essa falta de consciência de homens e mulheres no trabalho, simplesmente, pode chamar-se de alienação.

De acordo com Marx (1978), se trabalho é toda a prática cultural, quando se está educando, está trabalhando e vice-versa. Agora, se o trabalho ou a educação faz esquecer que o que se realiza constitui o devir humano (transformação, mudança, tornar-se diferente do que já foi), então se trabalha alienadamente. Conseqüentemente, educa sem saber que educa. Se for assim, no trabalho e na educação que alguém faz, ao mesmo tempo esquece-se da sua humanidade e da humanidade de quem é por ele educado. Ainda conforme Marx (Apud MÈSZAROS, 2008, p.60) um processo de auto-alienação escravizante “efetiva transcendência da auto-alienação” seja caracterizada como uma tarefa inevitavelmente educacional, a universalização da educação e a universalização do trabalho como atividade humana auto-realizadora.


Fonte: VOLPONI, Mauro. Tecnologia na Educação e Interdisciplinaridade. Maringá: FCV, 2009.

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